quarta-feira, 29 de abril de 2015

Aquela do Inferno


O telefone toca, atendo, é ele:

-“Então... estou ligando para me despedir.”
-“Estava pensando em você. O que está fazendo?”
-“Fumando um cigarro... aguardando. E você?”
-“Olhando o céu. É pela imensidão dele que ainda consigo enxergar a beleza de não sermos nada além de poeira das estrelas.”

Era o fim. Um enorme asteroide iria se chocar contra a Terra. Toda forma de vida existente nela deixaria de existir.

-“Queria dizer que foi um prazer dividir esta existência com você.”
-“O prazer foi todo meu, querido. Obrigada por tudo...”

***
Acordo. Estou em uma mata bem fechada. Uma floresta, talvez? Tudo não passou de um sonho?

-“Oi?”
-“Como viemos parar aqui? Não consigo me lembrar de nada...”
-“O asteroide caiu. Era para estarmos mortos.”
-“Talvez viemos parar na ilha de Lost.”

Olhamos ao longe, vemos uma fila enorme formada na frente de um portão de ferro gigantesco. Nos aproximamos e ouvimos gritos estridentes para que todos se organizem.

Sinto uma forte baforada atrás de mim. Ao olhar para trás, um cão gigantesco com três cabeças respirava ofegantemente. Logo se via que estava estressado e estranhando a quantidade de pessoas que ali estavam. Pego um galho, jogo ao longe e ele sai correndo para buscar todo alegre.

-“Espera aí, um cão com três cabeças? Só pode ser...”
-“Cérbero, querido, o guardião do Inferno.”
-“Então nós estamos...”
-“Vamos todos formando a fila que tem lugar pra todo mundo. Droga! Justo hoje que estou com pouco contingente. Não estou entendendo é nada. De onde saiu tanta gente de repente? Já se foram os grandes terremotos chineses e as boas condições de higiene dizimaram a Peste Bubônica.”

E eis que vemos um ser enorme caminhando em nossa direção: vermelho, com chifres, voz grossa e pernas musculosas como um bode.

-“Seria uma mulher fruta?”
-“Shhhiu! Ãn, ér, senhor? Me desculpe incomodá-lo. Sei que a situação parece meio caótica, mas poderíamos saber onde estamos?
-“Ah sim, pois não. Bem-vinda ao Inferno. Ali na frente meus subordinados irão te dar todas as informações necessárias. Peço desculpas pela falta de organização, mas não esperava tanta gente de uma só vez e liberei uns demônios para irem se divertir na Terra disfarçados de jornalistas e atores para disseminarem que vacinas causam autismo. Será que ainda chega mais gente?”
-“Ah, muito mais! Os humanos foram exterminados pelo asteroide e... desculpe, mas o senhor seria quem?”
-“Grande desse jeito, voz grossa, patas de bode, quem você imagina que eu seja?”
-“Uma panicat?”

Olho para o lado, vejo o ser que dividiu a existência comigo xingando aos sete ventos.

-“Pulta que o pariu! Não acredito nisso!”
-“No que? Que viemos para o inferno?”
-“É! Significa que EXISTE um céu e um inferno. Tudo o que acreditamos a vida inteira estava errado!”
-“Sim, é uma droga. Mas poderia ser pior. Poderíamos ter ido parar no Nosso Lar.”

Ele senta no chão colocando as mãos na cabeça.

-“Foda... vamos sofrer pela eternidade. Ei, senhor Satanás, apesar de não terem chegado todos ainda, acredito eu que era pra ter muito mais gente, não?”
-“Sim! Mas o tal do “arrependimento” de última hora.”
-“Como assim?”

Adentramos os portões de ferro. Escuridão, rios de lava, sofrimento, gritos, pessoas sendo torturadas e um calor tenebroso. Ao fundo, podemos observar pessoas amarradas a cadeiras com fones de ouvido, se debatendo desesperadas.

-“O que está acontecendo com elas? Estão levando choques?”
-“Elas ficarão ouvindo Luan Santana pela eternidade.”

Meu companheiro, visivelmente transtornado, grita:
-“Nãããããão!”
-“Deviam ter pensado em seus atos enquanto ainda estavam vivos. Quem mandou não se arrependerem? Este é o Inferno.”
-“Mas Seu Satã, me diz uma coisa: como é essa história de arrependimento?”
-“Ah! Só sobram pra mim os peixes pequenos. Quem eu realmente estava mirando vai lá pra cima. É só se arrepender no último momento."
-"Ué, mas é tão fácil assim?"
-"Exatamente! A pessoa pode ser uma grandessíssima filha da puta a vida inteira, pode ser corrupta, exploradora, pedófila, traidora. Mas daí vem o último arrependimento e pimba! Consegue o perdão, sobe e eu que fiquei a vida toda dela só prestando atenção e achando que ia me dar bem por aqui, o Outro lá é que leva."
-"Mas isso me parece bem injusto... porque é como se a pessoa não precisasse ter responsabilidade alguma sobre os próprios atos."
-"Muito injusto. Nunca meto a mão nos grandes, mas não posso fazer nada."
-"Quem disse?"

Ele coça a cabeça intrigado. Acenamos para outras pessoas se aproximarem e começa-se então um debate entre pensadores, filósofos e artistas para tentar convencer Satanás sobre a possibilidade de se criar uma nova realidade para o inferno.

Sócrates: -"Deixe-me fazer algumas perguntas… Se aqueles que realmente fizeram atrocidades estão lá em cima, não parece uma perda de tempo punir os que estão aqui embaixo?"
Satanás: -"Bem… é que…"
Aristóteles: -"Exatamente, você estaria punindo quem não burlou o sistema, quem assumiu responsabilidade por seus atos. É uma questão de lógica."
Satanás: -"Bem… em tese…"
Maquiavel: -"Tese? Não, a teoria não se separa da prática! Se quer alguma mudança, tem que realizá-la na prática!"

Visivelmente empolgado com a conversa, meu companheiro diz: 
-"Precisa mesmo essa coisa maniqueísta de fazer do inferno um contraponto do céu?"

E eu indago:
-"Porque não tocar nossas vidas por aqui de forma normal?"
Satanás: -"Mas… eu perderia minha função!"

Respondo:
-"O mundo não gira em torno do seu umbigo!"
Copérnico: -"Cuidado, amiga. Eu vim parar aqui por levantar essa lebre de girar em torno de… esse papo não é muito bem visto."
Satanás: -"VOCÊS TEM RAZÃO!"
Todos: *comemorando*
***

Saio do meu prédio, o Dante’s Residencial Clube, entro no meu carro, um grande veículo utilitário movido a hidrogênio.

-“Não faz barulho nenhum, né?”
-“Ainda bem que desenvolveram essa tecnologia por aqui. Com essa coisa do inferno ter teto, a poluição estava ficando absurda.”
-“O que aconteceu com o seu?”
-“Eu saí para ver o novo stand-up do Bill Hicks ontem à noite. Encontrei com uns amigos, esticamos naquele barzinho onde o Miles Davies está tocando agora. Preferi deixar o meu carro no estacionamento do que dirigir bêbado. Me deixa lá agora?”
-“Claro! O bom é que ninguém vai roubar seu carro. Mas hein, incrível como sempre tem coisa bacana pra fazer de noite aqui no inferno, não?”
-“Exatamente. Nos vemos mais tarde no show da Janis com o Hendrix?”
-“Combinado! Vou encontrar as meninas agora. Até!”

***
Encontro Naara e Rose na grande praça circular em frente a um gigantesco portão feito de metal retorcido, todo estilizado com motivos demoníacos, pentagramas e números 6. O portão fecha a passagem de uma estrada, única entrada possível no intransponível muro que circunda o inferno. Agora escrevemos para o blog Enxofriê com os codinomes Hellzebuah, Astaroseh e Naazuzua, nomes pelos quais ficamos conhecidas pelos habitantes locais.

Astaroseh: -“Ô portãzinho brega, hein?”
Naazuzua: -“Parece que chamaram o Picasso para refazer. Ele ganhou a concorrência contra o Van Gogh. Está no portal da transparência do governo infernal.”

Viro-me para o porteiro:
Hellzebuah: -“Oi? Bom dia! Nós temos autorização para sair e aproveitar o dia na ilha de Lost. Você poderia abrir o portão pra gente?”
Demônio: -“Deixa eu conferir aqui no sistema… Pronto! Confirmado.”
Astaroseh: - “Eu ainda me impressiono como não tem burocracia por aqui.”
Demônio: -“Desde a revolução as coisas melhoraram muito. Acredita que eu precisava achar passagens de escrituras sagradas que condenassem os que entravam aqui, TODA VEZ que chegava alguém? Vocês inventaram umas dez mil religiões diferentes! Algumas escrituras só estavam impressas em pedras… Era uma trabalheira.”
Hellzebuah: -“Sobra até tempo para estudar agora, não?”
Demônio: -“Ah… isso?” *pegando a apostila* “Estou me formando em Filosofia semestre que vem. Pegar um cargo melhor, sabe? Adorei esse novo plano de carreira!”
Naazuzua: -“Olha só, ser promovido por se formar em Filosofia!”
Hellzebuah: -“Graças ao diabo!”
Todas: -“Hahahaha…”
***

Vinte anos após Satanás ter se rendido à falta de lógica do sistema estabelecido e decidido que aquela sociedade se regularia por regras próprias, um novo sistema foi implementado no Inferno. Um sistema baseado na Justiça sem corrupção, em Educação que estimulasse o pensamento crítico, na realização do Bem com desprendimento, sem espera de benefícios, em Integridade Social.

Prontamente as pessoas que ali estavam se organizaram. Para surpresa geral, a coisa começou a funcionar bem, talvez pelo perfil dos moradores, pessoas que se recusaram a aproveitar uma brecha no sistema para se dar bem e foram fiéis às suas convicções. 

E esta dinâmica funcionou de forma tão brilhante que um vasto campo de Filosofia, Ciências e Artes se desenvolveu. Uma sociedade organizada e progressista baseada na racionalidade despontava e produzia como nenhuma outra. Homens e mulheres eram tratados como iguais, havia respeito e liberdade a ambos. Havia solidariedade social sempre pensando-se no bem estar coletivo. A evolução social saltava aos olhos. 

Muitas cabeças pensantes estavam no inferno. Não haviam pessoas acorrentadas a falsas crenças, preconceitos, ódio, ideias enganosas e inertes em poucas possibilidades. Não havia como tirar a responsabilidade de si pelos próprios atos e atribuir a outrem. Vivíamos em uma caverna, mas éramos iluminados pela luz do nosso próprio conhecimento.

*** 

Por Hell/Agridossiê


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